De tempos em tempos mergulho em assuntos aleatórios de pesquisa. Minha última obsessão é um misto de pessoa e elemento da natureza: o mar e a navegadora Tamara Klink, a brasileira mais jovem a atravessar o Atlântico em solitário.
Em 2021, no meio de uma pandemia, aos 24 anos, ela partiu da França em direção ao Brasil em um pequeno veleiro comprado pelo preço de uma bicicleta. Não sei bem como cheguei a essa história, mas fiquei fascinada. Não posso negar que geralmente sou pega pela poesia dos acontecimentos: atravessar o atlântico em solitário. Um grande acontecimento, um grande verso.
Devorei seus diários de bordo em vídeo, livros, documentários, entrevistas e TED Talks. Os diários de bordo são por si só um gênero literário encantador. As travessias são férteis em palavras que buscam decifrar o destino. Seu TED Talk se intitula: “Cruzei o Atlântico sozinha e não tive coragem”.
Em vez de se vangloriar pelo feito, ela lista todos os medos que sentiu desde que decidiu partir e como a navegação, na verdade, não fez dela mais corajosa, mas, sim, deu contorno e especificidade aos seus medos. Enquanto ela não deixava o porto, o mar era uma grandiosa e indiscernível onda de medos. Quando ela partiu, eles tomaram forma. E nisso talvez consista a única possibilidade de coragem: encontrar a face do medo.
A água é assustadora porque não tem contornos. Muda de forma de acordo com a geografia da terra. Ora se acomoda à forma, ora engole a forma. Já cantava Paulinho da Viola: o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar. O mar é inconstante, o vento também. Como diz a própria Tamara, o mar só é possível aos humanos porque inventamos os barcos. Eles são os artefatos que nos dão contorno para flutuar sobre ausência de forma da água.
Flutuar sobre a ausência de rosto do mar. Talvez nisso consista o terrível: a ausência de uma face. Nossas invenções são o nosso artefato de coragem.
O barco de Tamara, porém, custou o preço de uma bicicleta. Passou por reformas, mas era precário, pequeno, lento. A primeira coisa que ela ouviu de sua mãe que a esperava atracar no porto do Recife depois da travessia foi: “como esse barco é pequeno!”. Aos que se admiravam com a pequenez de sua embarcação diante do Atlântico ela respondeu que foram justamente suas precariedades e limitações a sua escola.
Tamara manteve a decisão de partir em segredo dos pais (os célebres velejadores Klink) por bastante tempo. Não suportaria ser desencorajada pela experiência dos mais velhos antes que tivesse fortalecido suficientemente o plano. No livro Mil Milhas, ela escreve:
“Um mal-entendido, uma desfeita, um olhar de reprovação é um perigo iminente e, talvez, fatal. Por isso, os planos precisam ser protegidos até o dia em que deixam de ser planos para se tornarem construção.”
A única que sabia do seu segredo era a sua avó, que a inquiriu: “Por que sozinha, Tamara? Por que você não chama dois idiotas para irem com você?”. Ao que ela respondeu: “Se eu posso ir com dois idiotas, também posso ir comigo mesma”. Afinal de contas, idiotas ao mar podem ser um grande perigo. Porto seguro é estar consigo.
A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner tem um livro inteiro dedicado ao Mar. No poema “Deriva XIV” ela escreve:
“Através do teu coração passou barco que não para de seguir sem ti o seu caminho”.
Deixemos na terra os idiotas. Levemos à bordo o coração. Coragem é tomar a própria face como embarcação.
Na quarta-feira tivemos lua nova no céu. Volto na próxima lua cheia, com mais uma coleção de devaneios.
Esse texto desassossegou alguma coisa por aí? Te remeteu a um sentimento, um livro, uma aleatoriedade digna de nota? Deixe um comentário, vamos tc, como faziam os astecas.
Até breve!
Ana Beatriz
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