“Lave a louça com mesmo cuidado e atenção que você teria ao banhar o bebê buda.”
Me lembro de ter lido essa frase em um livro sobre meditação, lá pelos idos de 2018, dois anos antes de viver meu primeiro e único retiro de meditativo. Dez dias em silêncio.
Esse livro, porém, era de uma corrente que dizia ser possível entrar em “estado de meditação” em atividades cotidianas, como lavar a louça. Mindfullness.
Há certos dias em que eu lavo a louça como se banhasse o bebê diabo. Há outros dias em que eu me lembro: o mesmo cuidado e atenção que você teria com o bebê buda. E conquisto alguns minutos de precária plenitude. Como é qualquer experiência de plenitude humana.
Mas calma, este não é um texto sobre meditação.
O bebê buda no banheiro e nas telas
Eu não sou uma grande fã do diretor Wim Wenders, mas levada por muitos comentários e críticas positivas – e a visibilidade que o Oscar dá aos filmes – fui assistir a Dias Perfeitos, sua produção mais recente. E foi como assistir alguém banhando o bebê buda por duas horas.
Não, não é profundamente entediante como essa frase sugere. Porque se você presta atenção, acaba sendo banhado também. De poesia e um pouco de precária plenitude.
Esse é um daqueles filmes em que nada de mirabolante ou dramático acontece. Ele conta a história de um funcionário dos banheiros públicos de Tóquio que passa boa parte dos seus dias limpando as pias e privadas com a mesma atenção e cuidado que teria ao banhar o bebê buda.
Hirayama não se ressente do trabalho em tese “simples”. Primeiro, porque em Tóquio, esse trabalho parece ser tratado com muito mais dignidade. Depois, porque ele parece ter escolhido conscientemente tal emprego, apesar de ser um homem “culto”.
Ele o faz com atenção plena. Ao contrário de seu jovem colega que vive esfregando as privadas enquanto assiste vídeos no celular.
Nas horas vagas, Hirayama lê, ouve música, fotografa, presta atenção no movimento das árvores, presta atenção no céu, presta atenção nas pessoas.
Nas horas vagas Hirayma continua prestando atenção.
Mas calma, esta não é bem uma crítica de filme.
Junkies em busca do bebê buda
Ao assistir Dias Perfeitos também me propûs um par de horas de uma espécie “atenção plena”. Talvez por isso tenha conseguido me banhar na beleza do bebê buda ou, no caso, de Wim Wenders e grande elenco.
Quem hoje consegue ver um filme inteiro sem parar para dar uma olhadinha no celular? Praticamente um esforço monástico. Me “peguei pegando” o celular várias vezes, mas resisti à tentação de abrir o calabouço da atenção.
Alguns pesquisadores chamam a nossa economia atual de economia da atenção. Talvez seja mais preciso chamar de economia da distração. O celular é o calabouço da atenção e o show pirotécnico da distração.
Está todo mundo competindo por alguns segundos da nossa atenção: grandes marcas, profissionais autônomos do precariado, professores de Havard desmentindo fake news, um amigo que posta a foto das férias.
Um minuto da sua atenção, por favor. Um minuto não. Dizem os especialistas que em um vídeo, é preciso capturar o espectador nos primeiros 8 segundos.
Gastando meu tempo de distração no Tiktok – para alguns, o calabouço na geração Z – tenho visto muitas pessoas, principalmente na gringa, falando sobre detox de dopamina ou dopamine reset.
Ao que tudo indica, as telas atuam diretamente na área do cérebro ligada ao prazer e à liberação de dopamina. O excesso de uso, nos leva a ficar viciados nessa liberação de prazer rápida, vídeos curtos, mensagens instantâneas, curtidas.
Outras coisas também atuam nessa liberação rápida de dopamina: junkie food, açúcar, cafeína, drogas, pornografia, compras. Enfim, tudo que vicia.
Percebendo o vício, muita gente tem feito períodos de jejum ou detox, se abstendo de redes sociais e outros hábitos associados para tentar resetar o sistema. Como Amy Winehouse, estão indo para a reheab.
O nosso mundo, o dos dos junkies da liberação rápida de dopamina por telas, é muito distante do mundo Hyrayma. Apesar de limpar banheiros para viver, seu mundo é cheio de beleza. Porque ele simplesmente presta atenção. Isso não significa uma vida perfeita, mas talvez, como sugere o nome do filme, alguns dias perfeitos. Apenas alguns dias. Como é a precária plenitude dos humanos.
Essa semana, no espírito de dias perfeitos, andando de metrô, deixei o celular de lado e observei as pessoas com um pouco de atenção. Uma parcela de beleza, outra de tristeza, outra do mundo sendo aquilo que é.
Se você fez o esforço monástico de chegar ao fim desse texto de mais de 800 palavras na era dos 8 segundos, obrigada pela atenção.
Talvez ele não valha tanto para ser banhado como o bebê buda, mas espero que tenha te banhado com o desejo de manter algum encantamento pela vida.
até breve,
Ana Beatriz
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