Na última semana estive em Paraty para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). A maioria das mesas de debate da Flip, mesmo as que não estão na programação oficial, são altamente disputadas. No sábado, depois que eu falhei em conseguir um lugar para assistir um debate com Sidarta Ribeiro, saí andando pelas ruas de pé-de-moleque para encontrar outra conversa onde pousar.
E pousei, muito bem, em um leitura de Andréa Beltrão de Antígona, a tragédia de Sófocles por ela encenada no teatro — a quem não assistiu recomendo com todas as minhas células. A sala estava igualmente cheia, mas dessa vez eu fiquei na janela escutando Andréa. Quando cheguei, ela ainda não lia Antígona. Falava de esperança.
A atriz compartilhava a sua visão desse, podemos assim dizer, sentimento? Às vezes enaltecido, às vezes desprezado como a ingenuidade de quem espera soluções mágicas para a vida. Mas ela disse: “eu acho que a esperança é um sentimento selvagem, brutal”. Na sua perspectiva, a esperança tem uma força irracional, é algo incotrolável. Nas piores situações, contra todas as probabilidades da boa razão, nos agarramos a uma esperança. Por quê? Algo que diz respeito a um senso de sobrevivência. Por isso, selvagem. Não se trata de otimismo alienado, mas de uma força vital de continuidade.
Embora a esperança não seja da ordem do otimismo, nessa hora, me lembrei daquela famosa frase do romancista Romain Rolland, mas popularizada por Antonio Gramsci: “O pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da vontade”. Pessimismo da razão, otimismo da vontade. Ficou marcado na dialética socialista, mas vale como paradoxo existencial. Talvez por isso a esperança seja frequentemente desprezada como ingenuidade, porque ela é aquilo que resiste quando a razão já decretou a derrota. Porque ela resiste quando a razão falha.
Eu peguei a conversa com Andréa Beltrão pelo meio. Não sei bem porque ela falava de esperança em uma leitura sobre Antígona. Mas posso imaginar ou fazer aqui um exercício de elucubração. “A esperança é última que morre”. Bom, Antígona é uma tragédia. A protagonista que dá nome à peça é condenada à morte. Ela se rebela contra as leis da cidade de Tebas e o Rei Creonte, insistindo em dar um enterro digno ao seu irmão. Insistindo em fazer o luto público, os ritos sagrados. Questionando as regras políticas e afirmando o amor, a legitimidade dos vínculos de sangue e confiando nas leis dos deuses.
Em seu monólogo final, lido mais tarde, naquela noite, por Andréa Beltrão, Antígona afirma que sabia estar amparada por um lei maior, que iria ao encontro de seu irmão e seus pais. Vai em direção ao seu destino sem se lamentar pela audácia que a levou à morte. Esperança de que a recompensa viria em outro plano? Ingenuidade? Ou, simplesmente, a afirmação de seus valores diante da morte? Antígona é derrotada (ainda que no final da peça o Rei Creotes caia em si e tente libertá-la; é tarde de mais, ela se suicida antes de ser executada) mas, mesmo diante da derrota, afirmou seus valores.
“A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram. Não, eu não iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei. Eu sei que vou morrer, não vou? Mesmo sem teu decreto. E se morrer antes do tempo, aceito isso como uma vantagem. Quando se vive como eu, em meio a tantas adversidades, a morte prematura é um grande prêmio. Morrer mais cedo não é uma amargura, amargura seria deixar abandonado o corpo de um irmão. E se disseres que ajo como louca eu te respondo que só sou louca na razão de um louco.” (Antígona; Sófloces na tradução de Millôr Fernandes)
Novamente, me vem uma frase célebre, dessa vez de Darcy Ribeiro: “fracassei em tudo que tentei na vida, mas detestaria estar no lugar de quem me venceu”. No final das contas, não é essa a tragédia da vida? Ao fim e ao cabo, seremos todos derrotados pela morte. Mas o que nos determina é afirmar o desejo de não estar ao lado da vencedora ainda que, invitavelmente, fracassemos diante de sua foice. Até porque, sua vitória, é sempre parcial. Nossa pequena vida individual pode acabar (não importa qual seja a sua crença no pós-morte), mas a Vida segue sem a nossa presença. A esperança, como sentimento selvagem, é a percepção da continuidade natural da vida.
Estamos chegando ao final do ano, época em que constumamos escutar: “é hora de renovar as esperanças”. Ao que sempre responde, um cínico de plantão: é só mais um dia depois do outro. Esse ritual de passagem é pura ficção. Ao que eu respondo: nossas ficçções são o que temos de mais precioso. É com elas que atravessamos o vazio. Nossas invenções para dar sentido e significado ao tempo são o barco dentro do qual atravessamos o atlântico que é estar vivo. Invariavalmente, naufragamos. Mas que pena seria não ver o nascer do sol no atlântico, não é mesmo? O sol, o atlântico, os peixes continuam depois dos naufrágios.
Culitivemos esperanças selvagens e embarcações que sabem amar o movimento oceânico da vida.
Até breve!
Ana Beatriz
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