Hello, strangers
Faz tempo que não apareço por aqui. O mês de maio foi sobrecarregado de tarefas e a tarefa de escrever a newsletter acabou ficando em segundo plano. Nada de novo sob o sol de uma vida de millenial multijobs no capitalismo tardio. Você precisa ganhar dinheiro, manter a saúde física e mental e ainda fazer a manutenção da sua visibilidade online.
No mês de maio, por motivos de força maior, eu tive que dizer: not today, Satan. Escrever é para mim trabalho e prazer, mas é preciso fazer algumas divisões onde escrever será mais prazer e menos trabalho. A newsletter, por enquanto, é mais prazer. Muito prazer, a frequência dessa newsletter então será: quando der.
E é justamente sobre esta nossa forma peculiar de visibilidade online que eu vim falar hoje. No último mês, por motivos de trabalho, retornei a um texto seminal da grande Susan Sontag, o livro Sobre a Fotografia.
No ensaio “Na caverna de Platão”, ela escreve sobre a crescente onipresença da fotografia na vida cotidiana. O que ela observa nos anos 1970 parece um presságio do que estamos vivendo de forma muito mais aguda hoje:
“Assim como as fotos dão às pessoas a posse imaginária de um passado irreal, também as ajudam a tomar posse de um espaço em que se acham inseguras. Assim, a fotografia desenvolve-se na esteira de uma das atividades modernas mais típicas: o turismo.
A própria atividade de tirar fotos é tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto. Isso dá forma à experiência: pare, tire uma foto e vá em frente.
O método atrai especialmente pessoas submetidas a uma ética cruel de trabalho — alemães, japoneses e americanos. Usar uma câmera atenua a angústia que pessoas submetidas ao imperativo do trabalho sentem por não trabalhar enquanto estão de férias, ocasião em que deveriam divertir-se. Elas têm algo a fazer que é uma imitação amigável do trabalho: podem tirar fotos.”
O argumento de Sontag é de que a fotografia é altamente compatível com outra atividade moderna, o turismo, que passou a ser viável com o desenvolvimento e popularização dos meios de transporte de longa distância. No século XXI, foram também as máquinas fotográficas que se tornaram ainda mais populares, acessíveis e convergentes neste aparelho que se tornou uma extensão do nosso próprio corpo: o celular.
Eu não pude deixar de pensar, observando e participando deste nosso tempo em que fotografamos tudo e todos, a qualquer momento, que nos tornamos turistas na nossa própria realidade. Somos turistas no treino pela manhã, no almoço na nossa própria sala de estar, no skincare diante do espelho do banheiro. Cada pequena fatia do cotidiano pode ser facilmente capturada pelas lentes digitais.
O sentimento de desorientação e insegurança dos turistas em uma nova cidade se tornou um sentimento geral contemporâneo. Somos permanentemente estrangeiros em nossa própria realidade.
Habitamos um mundo em diluição: ameaças constantes de catástrofes climáticas, empregos em vias de desaparecer com transformações radicais no mercado de trabalho, insegurança social, constantes mudanças provocadas por novas tecnologias. Será que é coincidência que estejamos, como turistas inseguros, fotografando e tentando capturar cada pedacinho do cotidiano?
Como escreveu Nastassja Martin no extraordinário livro Escute as feras: “o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências”. Talvez o que tenha nos restado como último recurso de estabilidade sejam mesmo as aparências, as milhares imagens do nosso cotidiano.
Ou talvez nem isso, afinal, será que essa imagem que você vê é um recorte da realidade ou uma criação da Inteligência Artificial? O mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências.
O que faremos diante da insegurança de um mundo que desmorona talvez seja a grande pergunta. Há sempre uma grande corporação — atualmente uma Big Tech — capaz de oferecer uma amotizador de angústias para nos fazer esquecer grandes perguntas. Como diria a canção, é preciso estar atento e forte.
Poemas para adiar o fim do mundo
Os homens prometeram com sua arquitetura
Vencer as ameaças naturais
Mas eu sou uma mulher
E me pergunto
Se não foi a minha coragem
Que foi vencida
Quando quiseram
Derrotar
Todas as ameaças
Todos os animais
A arquitetura venceu
E nos deixou
Sós
Com os nossos
Temores
Trecho do poema Fugere Urbem, que compõe o meu livro recém-lançado A Invenção do Desejo. Você pode adquirir o seu aqui.
Outras orientações
Como se orientar diante das inseguranças do mundo sempre foi uma angústia humana. Mais ou menos aguda dependendo da época. Por isso desenvolvemos formas de orientar, prever, situar e medir o tempo e o espaço. Hoje, acredito que nosso atual estágio técnico é mais direcionado a tudo controlar, mais do que produzir orientação.
A astrologia é uma forma ancestral de se orientar pelo mundo, medir e dar sentido ao tempo. Se desenvolveu em épocas em que se orientar pela natureza era a tônica do mundo. Depois vieram outras formas de conhecimento e controle pela técnica e pela ciência.
Se você deseja experimentar outras formas de se orientar pelo mundo, marque uma consulta. A agenda de junho está aberta.
até breve,
Ana Beatriz
Esse texto desassossegou alguma coisa por aí? Te remeteu a um sentimento, um livro, uma aleatoriedade digna de nota? Deixe um comentário, vamos tc, como faziam os astecas.
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