Eu peço desculpas. Preciso citar novamente o filme mais recente de Almodóvar — sim, eu estou obcecada e fui assistir pela segunda vez, no cinema. Se você ainda não leu a última edição da newsletter, espia aqui.
No “Quarto ao lado”, quando a personagem de Tilda Swinton decide tomar as rédeas da hora de sua morte, se refugia em uma casa no campo para desfrutar de seus últimos dias.
Em determinado momento, a mulher que tem hora marcada com o fim se dá conta de uma sensação estranha: “todo o prazer foi reduzido”. Já não encontrava prazer na leitura e na escrita — hábitos prazerosos e frequentes de outrora. Ela descreve uma mente que “vaga no vazio” e “não consegue se concentrar”.
Agora, eu te pergunto: seria um salto muito brutal dizer brain rot?
A expressão que se traduz literalmente por “apodrecimento cerebral” foi escolhida como a palavra do ano de 2024 pelo dicionário Oxford. Segundo a Forbes, que fez uma matéria sobre o termo, ele se refere “ao declínio das capacidades mentais ou intelectuais de uma pessoa devido ao tempo excessivo de consumo de conteúdos, especialmente online, o que começa a ser provado por cientistas em todo o mundo”.
A personagem de Almodóvar não está enfrentando um vício em telas, mas um câncer cervical. Entretanto, em sua fala sobre a relação entre “uma mente que não consegue se concentrar” e um corpo com “todo prazer reduzido” se revela uma dimensão fatal do nosso apodrecimento cerebral em tempos exploração predatória da atenção.
Muito prazer, atenção: os parques de diversão da dopamina
Na era do brain rot, a discussão sobre o papel da dopamina se tornou frequente entre quem experiencia uma vida cronicamente online. Livros como “Nação Dopamina” começaram a alertar o público geral sobre a conexão entre o uso da Internet, especialmente as redes sociais, e este neurotransmissor.
A dopamina atua no sistema de recompensa do cérebro, gerando sensações de prazer e satisfação (ou de frustração, quando um objetivo não é alcançado). Ela é o que os engenheiros sociais do nosso ciberespaço buscam deliberadamente ativar.
No livro A máquina do caos, Max Fisher demonstra por meio de uma longa pesquisa e trabalho de entrevistas com programadores do Vale do Silício, que o raciocínio por trás da construção da maioria dos aplicativos de rede social é só um:
“Como consumir o máximo possível do seu tempo e da sua atenção? Para tanto, explicou, “de vez em quando precisamos provocar em você um pico de dopamina, quando alguém curte ou comenta sua foto ou postagem ou o que for. E isso o leva a contribuir com mais conteúdo, que vai render mais curtidas e mais comentários.”
Além de provocar os picos de dopamina, é preciso que eles ocorram em intervalos intermitentes. Mais ou menos como funciona em um cassino, conforme explica Max Fisher:
“Os maiores segredos do cassino: o reforçamento intermitente de intervalo variável. A imprevisibilidade da compensação torna difícil parar. As mídias sociais fazem a mesma coisa.”

Embora a dopamina seja um neurotransmissor associado ao prazer, a constante exposição às plataformas digitais estimula os picos de prazer intermitente; uma recompensa rápida promovida de forma fragmentada e passiva dentro de experiências em que a mente fica saltitando entre uma variedade de estímulos descontínuos.
A concentração vai mesmo para o beleléu — onde será que fica o beleléu?
“Se você me ama, por que não se concentra?”
Este verso foi escrito pela poeta Ana Cristina César nos anos 70. Poderia, contudo, ser uma súplica de amor dos anos 2020.
Os prazeres dos picos online de dopamina talvez estejam entre os mais precários que já produzimos. Isso porque eles não estão apoiados em uma experiência de concentração, mas de dispersão.
Eu não sou neurocientista, mas não me parece absurdo afirmar que uma mente que se concentra ampara um corpo que sente prazer. Alguém já conseguiu ter um orgasmo enquanto a mente estava vagando pela lista de compras do supermercado?
A leitura profunda e concentrada tem sido estudada e comparada a estados meditativos de intenso prazer. O esforço mental é alto, mas produz recompensas que conseguem se estender na duração, em fruição.
Há algo no prazer que demanda a nossa atenção. A baixa qualidade da atenção também produz a precariedade do prazer. A insatisfação e a inquietação constantes que alimentam uma engrenagem digital de dinheiro.
O bom prazer — excluindo-se do “bom” qualquer juízo moral — exige de nós certa duração, um certo aprender a permanecer. Não, não. Não como penitência ou sacrifício — tão exaltados na cultura judaico-cristã. Talvez diga respeito a um interesse consistente pelo presente.
Tempo e prazer
Dessas intuições ou elaborações, depreende-se que o prazer é uma sensação que se dá no tempo. O prazer ama o tempo. Embora, tantas vezes, sua busca pareça nos colocar contra o tempo, é só plenamente dentro da duração que ele acontece.
A personagem de Almodóvar que tem hora marcada com a morte diz: “eu tenho tão pouco tempo, não quero desperdiçá-lo”. Na ânsia não perder tempo, sua mente vaga e não consegue se concentrar. É difícil ter prazer.
Não há tempo perder. O tempo é curto. Não podemos perder mais tempo. Imperativos do pós-capitalismo.
Tudo que nos foi dado, porém, desde o instante do nosso nascimento foi: um corpo, um tempo a perder. E só na hora da morte, ele terá sido de fato totalmente perdido.
Então,
“Por que essa falta de concentração? Se você me ama, por que não se concentra?”
Concentrar-se talvez seja apenas estar presente no tempo que se perde. Uma das formas de amor e prazer que foi dada a nós, meros mortais.
Se você me amou e se concentrou neste humilde texto, gracias pelo tempo perdido.
Até breve,
Ana Beatriz
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Caramba, que texto bom! Obrigada!! ❤️
Me lembrou muito o livro da Maria Rita Kehl, "o tempo e o cão", onde ela fala sobre esse empobrecimento da experiência à medida que o tempo é experimentado como algo estreito, e ao mesmo tempo, onde nossa atenção é constantemente solicitada, impedindo que marcas vivenciais possam se fazer.